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Guilherme Rambo

Apple vs. Epic: ambas estão erradas nessa briga de gigantes

Guilherme Rambo

21/08/2020 04h00

Crédito: Divulgação

Na semana passada, teve início uma das maiores batalhas entre a Apple e uma empresa desenvolvedora desde o lançamento da App Store em 2008. Trago aqui o meu ponto de vista — de desenvolvedor — sobre tudo o que está acontecendo.

O que aconteceu?

A Epic — desenvolvedora do Fortnite — lançou uma atualização do jogo permitindo aos usuários fazerem transações sem utilizar o sistema de compras dentro do app da Apple, o que não é permitido. A Apple então seguiu as suas próprias regras e tirou o jogo da App Store. Se quiser ler mais sobre tudo o que aconteceu até aqui, recomendo este texto do Gabriel, que traz um excelente resumo da situação.

As regras da App Store

O regulamento da App Store, criado pela própria Apple, exige que aplicativos utilizem o sistema de compras dentro do app fornecido pela empresa, que é totalmente integrado com o sistema e também garante a cobrança de 30% de comissão sobre todas as vendas feitas dentro dos apps, para coisas virtuais (isso não se aplica a e-commerce de produtos, por exemplo).

Outro aspecto da App Store é que todos os aplicativos — e suas atualizações — são revisados manualmente antes de irem ao ar. Quando essa revisão é feita, o revisor analisa o comportamento do app com respeito à todas as regras e, caso perceba alguma violação, rejeita a atualização e solicita ao desenvolvedor o envio de uma nova, corrigindo o problema encontrado.

Mas, se a atualização do Fortnite passou por este processo, como que o revisor não percebeu que eles estavam oferecendo compras dentro do app sem utilizar o sistema da Apple?

Feature Switches

Existe uma técnica muito comumente utilizada em aplicativos que é chamada de feature switch. Basicamente isso permite ao desenvolvedor ou empresa lançar o app na loja com alguns recursos desligados, podendo ligá-los ou desligá-los remotamente no futuro, sem a necessidade de uma nova atualização ser lançada.

Essa técnica não é usada primariamente por motivos obscuros ou para burlar regras da App Store, geralmente é usada como forma de previnir possíveis problemas, permitindo o desligamento de funcionalidades não-essenciais que estejam causando bugs ou travamentos, além de permitir o lançamento de funcionalidades futuramente, sem esperar a aprovação da App Store.

No entanto, a Epic decidiu usar esse mecanismo para "esconder" o recurso de compras usando o sistema próprio deles, fazendo assim com que a atualização passasse pela avaliação da Apple sem maiores problemas.

O bloqueio

A ação inicial que a Apple tomou foi retirar o Fortnite da App Store. Existe muita confusão a respeito do que isso significa, então acho que vale explicar aqui.

Quando um aplicativo é simplesmente removido da App Store — seja pela Apple ou pelo desenvolvedor — ele não desaparece dos iPhones de todos os usuários, nem deixa de funcionar. Mesmo que você remova o app do seu iPhone, pode baixá-lo novamente na loja, abrindo o app da App Store, tocando na sua imagem e depois na opção "Minhas Compras". Isso, claro, assumindo que você já tinha baixado o app alguma vez no passado, se você nunca teve o app, não conseguirá baixá-lo enquanto estiver removido da App Store.

Mas a Apple tem sim o poder de desabilitar qualquer app remotamente. Após a insistência da Epic em não remover a compra com o sistema deles, a Apple deu um prazo para que a mesma remova essa opção do app até dia 28 de agosto, do contrário a Epic seria removida do programa de desenvolvimento. Essa ação por parte da Apple tem sim o potencial de tornar todos os apps e jogos da Epic inutilizáveis, até mesmo no Mac.

Minha opinião como desenvolvedor

Quando se vê uma situação como essa se desenrolando, é muito tentador defender um lado ou outro da história, como se fosse seu time de futebol. A realidade é que estamos falando de duas empresas valiosas e poderosas, cada uma buscando defender seus próprios interesses.

No caso da Epic, ela quer o poder de lançar seus jogos como bem entender para todas as plataformas, sem precisar pagar uma comissão de 30% sob as vendas feitas dentro deles. No caso da Apple, ela quer manter a App Store como ela é hoje, garantindo a coleta dos 30% de todas as vendas feitas dentro de todos os apps.

Até certo ponto, as duas estão erradas. A Epic violou uma regra da App Store claramente e intencionalmente, enquanto a Apple não enxerga que não estamos mais em 2008 e a forma como ela gerencia a App Store está ultrapassada e precisa de mudanças urgentemente.

Apesar da Epic estar interessada apenas em não pagar a comissão para a Apple, eu vejo a atitude da empresa de forma positiva. A Apple tem utilizado seu poder de mercado há muitos anos para pressionar desenvolvedores pequenos e grandes a agirem como ela quer, o que a Epic está fazendo é usar o seu poder no mercado para pressionar a Apple.

A questão vai muito além dos 30% de comissão. A App Store é absurdamente fechada e engessada, o que acaba impedindo inovações de surgirem nos apps, dadas as limitações impostas pelas regras, além daquelas impostas nos próprios sistemas. Basta olhar para outro caso recente, do xCloud da Microsoft, entre outros serviços de streaming de jogos, que são simplesmente proibidos de rodar no iOS por conta das regras da App Store. Quem perde com isso são os usuários.

No que essa briga mais recente irá resultar, ainda não sabemos. É possível que a Apple acabe dando o braço a torcer até certo ponto, assim como é possível que não faça nada e isso acabe virando somente mais gasolina no fogo das investigações de anti-truste que estão ocorrendo em diversas partes do mundo.

Uma coisa é certa: mesmo que a Epic volte atrás e o Fortnite acabe voltando para a App Store, a reputação da Apple no meio gamer — e com desenvolvedores — já foi prejudicada de forma irreversível.

Sobre o autor

Guilherme Rambo é programador desde os 12 anos. Especialista em engenharia reversa, é conhecido mundialmente por revelar os segredos da Apple antes mesmo dos anúncios da empresa, além de programar para as plataformas da empresa.

Sobre o blog

Dos segredos escondidos nos códigos da Apple às tendências do mundo da tecnologia, o blog Entre Linhas aborda semanalmente os temas mais interessantes e atuais do mercado tecnológico sob o ponto de vista do programador Guilherme Rambo.