Apple diz que seus apps não têm vantagens sobre rivais, mas não é bem assim
Guilherme Rambo
31/07/2020 04h00
Crédito: Reprodução
Nesta quarta-feira (29), uma comissão especial do Congresso americano se reuniu com os CEOs das principais empresas de tecnologia — Apple, Google, Amazon e Facebook — para discutir possíveis práticas anticompetitivas adotadas pelas empresas.
No caso da Apple (assunto deste blog), o foco é a sua conduta como dona da App Store. A loja oficial do iPhone é a única maneira existente para a distribuição de aplicativos comerciais para consumidores. Sempre que um app é comprado — ou uma compra de conteúdo digital é feita dentro do app — o desenvolvedor paga uma comissão de 30% para a Apple.
Regras extremamente rígidas são aplicadas para os aplicativos de terceiros que são distribuídos pela App Store. Apesar dessas regras estarem descritas no App Review Guidelines, muitas vezes elas são interpretadas de forma diferente, o que dá margem para erros, fonte frequente de reclamação dos desenvolvedores.
Outra questão importante é sobre uma regra específica, justamente a regra dizendo que todos os pagamentos por conteúdo digital feitos dentro de aplicativos devem utilizar obrigatoriamente o sistema de compras dentro do app (In-App Purchase) e pagar a comissão de 30% para a Apple.
Com a existência dessas regras e o fato da empresa não permitir a distribuição de apps fora da App Store, surgiu a acusação de anticompetitividade, afinal a própria Apple tem apps e serviços — como Apple Music e Apple TV+ — que deveriam estar competindo com seus concorrentes — Spotify e Netflix, por exemplo — mas se beneficiam de não ter que pagar a taxa de 30%, além de terem vantagens exclusivas por estarem integrados ao sistema em um nível muito além do que qualquer desenvolvedor externo poderia fazer.
Durante a sessão desta semana, Tim Cook respondeu duas perguntas cruciais sobre o assunto.
A Apple trata todos os desenvolvedores da mesma forma?
Cook foi perguntado sobre o tratamento dado por parte da Apple aos desenvolvedores, mais especificamente, se todos os desenvolvedores devem seguir as mesmas regras e têm as mesmas condições. Sua resposta foi que sim, todos os desenvolvedores seguem as mesmas regras e condições.
A realidade, no entanto, é bem diferente. Algumas empresas específicas, como Netflix e Amazon (com o app Prime Video), podem vender assinaturas e conteúdos digitais utilizando o sistema de compra dentro dos apps, mas pagando apenas 15% de comissão, metade dos 30% que os demais desenvolvedores precisam pagar.
Isto foi comprovado em documentos tornados públicos como parte do processo, incluindo um e-mail onde Eddy Cue (chefe de serviços da empresa) fala sobre uma conversa com Jeff Bezos (CEO da Amazon) onde foi feito o acordo para que a empresa pague 15% de comissão das assinaturas e compras feitas através do seu app na App Store.
Além disso, no Prime Video, a Amazon tem acesso a um recurso de compras dentro do app que nenhum outro aplicativo tem, para permitir a compra e aluguel de conteúdos do seu amplo catálogo de filmes sem a necessidade de cadastrá-los individualmente no sistema de compras da Apple, algo que qualquer outro desenvolvedor precisaria fazer (além de pagar os 30% de comissão).
Os apps da Apple que são distribuídos na App Store seguem as mesmas regras?
A segunda pergunta foi referente aos aplicativos que a Apple oferece na App Store (Clips, Pages, iMovie, entre outros). Cook foi perguntado se esses apps precisam seguir as mesmas regras a restrições dos apps distribuídos por terceiros. A resposta foi de que sim, os apps da própria Apple distribuídos na App Store seguem as mesmas regras e restrições que os apps de terceiros.
Mais uma vez, isso não é verdade. Primeiramente preciso deixar bem claro que estou me referindo aos apps que a Apple vende ou distribuí pela App Store, não aqueles que já fazem parte do sistema (como o app Câmera, por exemplo).
Pegando o exemplo do app Clips, que permite aos usuários fazer vídeos estilizados com música e vários efeitos. Quando você instala o app e roda pela primeira vez, ele já consegue acessar sua câmera e microfone sem precisar pedir permissão, algo que todos os apps de terceiros precisam fazer. Isso é possível graças a códigos "especiais" que apenas a Apple tem acesso.
Se algum aplicativo de outro desenvolvedor conseguisse de alguma forma fazer a mesma coisa e enviasse o aplicativo para a App Store, ele seria barrado na etapa de revisão do app.
Não estou propondo aqui que os apps da própria Apple deveriam ter que pedir permissão para usar a câmera — seria até um pouco estranho. Mas dada a situação — e o caso do Clips foi só um dos muitos exemplos — falar que os apps da Apple na loja seguem as mesmas regras dos apps de terceiros simplesmente não é verdade.
Qual seria a solução?
Honestamente, é muito difícil conseguir chegar em uma solução para essa questão da anticompetitividade da Apple como gestora da App Store e ao mesmo tempo distribuidora de aplicativos.
Por um lado, um dos principais motivos de todas essas restrições que a empresa impõe para a distribuição de aplicativos de terceiros tem motivos muito válidos: maior privacidade e segurança para os usuários. Por outro lado, eles garantem vantagens enormes para os aplicativos da Apple quando comparados com apps concorrentes.
Talvez uma opção seria a inclusão de um modelo semelhante ao Gatekeeper do Mac, que permite a distribuição de aplicativos sem passar pela App Store. O Mac sempre ofereceu essa opção para desenvolvedores e usuários e nem por isso é uma "terra sem leis", afinal o sistema em si já oferece vários recursos de segurança e privacidade. Essa solução tiraria da Apple o controle total sobre todo o software que é distribuído para o iPhone, mas ao mesmo tempo tiraria a pressão regulatória que a empresa está prestes a sofrer.
O final real dessa história, teremos que esperar para ver.
Sobre o autor
Guilherme Rambo é programador desde os 12 anos. Especialista em engenharia reversa, é conhecido mundialmente por revelar os segredos da Apple antes mesmo dos anúncios da empresa, além de programar para as plataformas da empresa.
Sobre o blog
Dos segredos escondidos nos códigos da Apple às tendências do mundo da tecnologia, o blog Entre Linhas aborda semanalmente os temas mais interessantes e atuais do mercado tecnológico sob o ponto de vista do programador Guilherme Rambo.